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onde jaz meu céu estrelado, por Fabiana Bruno e Eder Chiodetto.

Texto dos editores do livro publicado pela Fotô Editorial, Março de 2020.


Onde Jaz Meu Céu Estrelado é uma história feita a contrapelo de muitas outras histórias. Histórias de uma casa. De desaparição de um lugar. Histórias de um mar que avança e engole. De uma saudade profunda. Histórias de um lugar que fazia sentir o vento, o prazer e o desejo. Descobrir todas as pontas destas histórias, naturalmente, significará fazer uma arqueologia de sensações soterradas. Em cantos, poeiras, ruínas, cicatrizes, paixões e fragmentos de ser no vasto espaço-tempo.

Quando a artista visual Juliana Jacyntho deu início a este projeto, em 2016, o mar em Atafona - um pequeno lugar pertencente a São João da Barra, no Rio de Janeiro, cujo nome remete a moinho de vento - estava chegando muito perto das casas de sua infância. O mar, com suas ondas sopradas pelos ventos fortes, vinha lenta e sorrateiramente avançando desde 1950.

O acervo da artista visual, no entanto, curiosamente, tinha começado a se formar, quase duas décadas antes, com a tomada das primeiras fotografias em 1989. E esta produção vinha surgindo assim como as ondas dançam e lambem as areias e apagam nossas pegadas, deixando outras marcas invisíveis. A cada vez que a artista, nas suas idas e vindas à casa dos avós em Atafona, encontrava uma paisagem onírica, mágica, mas não declarada, fazia nascer de passagem uma fotografia.

Ao longo dos seus anos de vida em Atafona, Juliana Jacyntho deparava-se com a surpresa de mais casas que iam sendo tragadas pelo mar. Com elas, afundavam-se biografias, sonhos, lugares, construções e restavam desaparições. Com o avanço das marés em direção ao continente e o enfraquecimento da correnteza do rio Paraíba do Sul, que segurava o mar, cerca de vinte ruas desapareceram e com elas muitos lugares de memória de Juliana, como o antigo clube onde passava os carnavais na sua infância.

Aos poucos via e sentia a paisagem submergindo. A casa dos avós de Juliana Jacyntho, aquela em que havia vivido todos os verões de sua infância sentindo o vento, deitada na rede, de frente para o rio, em 2016 já estava mais perto do mar. As tentativas fotográficas da artista visual pré-definidas, no entanto, acumulavam impressões difusas sobre o lugar. Fotografias recusavam-se ao perene.

Assim como a força do oceano que atrai os homens e promete a eles reinos encantados restava a inquietação deste mistério de uma “pós-vida” da paisagem sugada pelo mar. Afinal, para onde iriam as memórias das casas tragadas pelo mar?

Encontrar verdadeiras histórias para Juliana Jacyntho era, antes de tudo, reconhecer que, naquele momento, elas estavam engolidas pelo silêncio. Diante da imensidão e da força do mar era preciso reconhecer o tema da desaparição, da queda e da quebra em pedaços, reconhecer a opulência do mar e encontrar seus lugares simbólicos.

O mar havia levado parte das memórias mas, estranhamente, para a artista, o mar também estava lá carregando uma parte de todos nós. É como se o mar, antes de ser o vilão da desaparição das construções e da história, fosse, igualmente, a soma de tudo. O mar contém também o mundo. Não havia mais nada para ver, mas tudo ainda estava lá misteriosamente segredado entre as ondas e a linha do horizonte.

Juliana Jacyntho descobria que seu trabalho documentava sem documentar. Pois como afirma o filósofo e historiador da arte, Georges Didi-Huberman, nunca poderemos dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Apesar da destruição, da supressão de todas as coisas. Convém saber olhar como um arqueólogo. E é através de um olhar desse tipo – de uma interrogação desse tipo – que vemos que as coisas começam a nos olhar a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados[1].

Era preciso olhar revolvendo a arqueologia de sua história e de seus muitos tempos que a compõem. “Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”[2]. Foi quando então Juliana decidiu não apenas fotografar, mas garimpar azulejos decorados semelhantes aos que havia encontrado outras vezes na praia e na casa de seus avós, antes de tudo ser carregado pelo mar. A artista visual colecionou inúmeros exemplares e os fotografou para compor ao lado de outras imagens do mar.

Assim, o mistério de uma outra vida da paisagem sugada pelo oceano começava a ser investigada pela obra da artista. Nascia uma outra paisagem. Agora, eram os azulejos com suas paisagens que desenhariam memórias no horizonte do mar: as histórias de Atafona e de seu mar não mais se formariam apenas por restos de uma destruição, mas pelas grafias de paisagem que desenham o porvir de outras histórias.

Onde Jaz Meu Céu Estrelado é um fotolivro que nos convida a desvendar as muitas camadas de tempos e memórias de lugar, a partir do gesto simbólico de mergulho e travessia entre dois blocos de páginas. Uma arqueologia poética em que as imagens, pela sua insistência de existir e reaparecer, nos levam a experimentar a sensação de querer ver o que não está mais lá. Um desejo de passado, grávido de futuro.


[1] Didi-Huberman, Georges. Cascas, São Paulo: Editora 34, 2017, p. 61. [2] Ibid., p. 41.

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